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Foto do escritorJefferson W. Santos | Ad Astra

Amanhã a gente "valta".

Atualizado: 23 de jun. de 2023



Este artigo é sobre inclusão e pertencimento.


São duas ideias básicas nas relações humanas em qualquer ambiente de trabalho sadio. É sobre elas que as reflexões que seguem se referem.


O ambiente de trabalho é um local onde se passa, no mínimo, um terço de um dia. Nessas oito horas o indivíduo deverá estar concentrado em suas atividades. Essa concentração é fundamental para que trabalhos em graus variados de complexidade sejam realizados de forma segura e eficiente e que também apresentem níveis bons de produtividade.


Em muitas empresas e organizações muitos funcionários até passam mais do que oito horas. O local ao qual essa narrativa se refere é um QUARTEL. Sim, um quartel, uma unidade militar: Um esquadrão com helicópteros militares. Uma organização à qual tive o orgulho e honra de comandar: O Segundo Esquadrão do Oitavo Grupo de Aviação (Esquadrão POTI).

Sim, é sobre inclusão e pertencimento em um ambiente castrense que no “senso comum é unicamente um lugar de “ralação” e de infinito “desconforto”.


Aquela unidade aérea era composta por dois hangares preparados para apoio logístico e à manutenção de aeronaves que operavam no teatro de operações europeu ao longo da Segunda Guerra Mundial.


Localizada em frente ao Aeroporto Internacional dos Guararapes, no Recife, todas salas, oficinas e espaços de trabalhos recebiam ventos constantes e eram sujeitos à ação corrosiva da maresia e aos ruídos de aeronaves usando motores em reverso (para auxílio na frenagem após o pouso) que eram constantes. Havia cheiro de mofo sempre presente em alguns setores devido a problemas de aeração e de forte umidade. Enfim, um local de trabalho de altíssimo grau de insalubridade e de desconforto.


A força de trabalho era composta por poucos oficiais aviadores, cerca de 60% de sargentos mecânicos de aeronaves e os demais eram cabos e soldados. Essa última parcela do contingente era a mais sacrificada.


Além de trabalharem como auxiliares de manutenção (trabalho mais pesado) também era os que cuidavam da varrição, capinagem, manutenção de instalações além, claro, de “tirarem serviços” de guarda e de segurança. Enfim, a vida deles no ambiente de trabalho era muito desconfortável.


Em função das diretrizes do Sistema de Serviço Militar Obrigatório, expressiva parcela daqueles sacrificados era composta de recrutas ou de soldados novos que encerravam o período de formação militar e passavam a trabalhar nas unidades da Base Aérea do Recife (onde o Esquadrão estava localizado) para adquirirem conhecimentos e treinamentos em atividades profissionais caso quisessem retornar à vida civil ao final do ano de serviço militar obrigatório.


Em função da origem social da grande maioria havia muitas dificuldades culturais, de comunicação e, até, de aprendizagem. Os desafios eram muitos pois trabalhar em âmbito de tecnologia, de logística e de suprimento de aviação requer atenção, dedicação e preparo...muito preparo.


Era preciso “trazer para junto” aqueles soldados. Esforçava-me em fazê-los desempenhar bem suas atividades. Isso tudo em meio a ambiente de elevados graus de desconforto e de insalubridade. Também não havia com “refrescar” a pesada escala de serviços de guarda e de segurança, à qual eles tinham que cumprir, em função da grande quantidade de postos de vigilância.


E, claro, havia o “rancho”. Apesar do cuidado, havia um quê de paradigma sobre a comida no “rancho” dos soldados. Mesmo com produtos de qualidade sendo comprados havia problemas estruturais e logísticos, além de uma consuetudinária má vontade em preparar comida para soldados. Era uma atividade muito além de minha zona de influência. Restava muita insatisfação...e com razão.


Havia outros dois esquadrões com outros tipos de aeronave, contudo, eram bem mais e mais bem aquinhoados em termos de equipamentos, ambientes de trabalho e ergonomia, em geral.


Quando iniciei minhas atividades como comandante do esquadrão de helicópteros, o setor encarregado de “distribuir” os soldados incorporados -para serem recebidos após o período de formação militar inicial- havia me informado que o meu esquadrão era o menos procurado por ter muita “ralação”. Isso ocorria uma vez que a distribuição era feita por escolha do soldado sendo a precedência dada pela “antiguidade” de formação na respectiva turma. O resultado é que somente aos últimos eram destinadas as vagas para o esquadrão que me refiro. Ou seja, por vontade própria, ninguém queria servir no Esquadrão POTI.


Era preciso mudar essa “lógica”, todavia o que tinha em mãos para tanto não me ajudava nem um pouco: Ambiente de trabalho insalubre, ergonomia da mobília e dos equipamentos desconfortável, carga de trabalho extenuante, qualidade do alimento servido não agradava e o volume de serviço militar de guarda e segurança não diminuía. Isso gerava um natural descontentamento. Não havia como ser diferente pois as instalações prediais da Base Aérea do Recife eram muito velhas e havia muitos postos de serviços de sentinela e de guarda e segurança.


O que me restava fazer era, mesmo sendo o comandante, um tenente-coronel, era “estar junto”, estar solidário, estar atento e estar receptivo.


Todos os dias circulava entre os setores de trabalho, alojamento dos soldados, área de serviços comuns e cercanias. Observava todos em suas atividades. Comecei a buscar brechas nas atividades para poder ampliar períodos de folgas. Inseri mais atividades recreativas nos horários destinados à prática de educação física (era compulsória duas vezes por semana por imposição regulamentar de aprestamento da capacidade física individual). Vez por outra almoçava junto a eles, no rancho dos soldados, sendo servido, na fila, pelos mesmos taifeiros que os servia. Buscava ampliar as oportunidades de happy hour nas sextas-feiras diminuindo as atividades de serviço nas quais havia soldados envolvidos para lhes dar mais chances de participar dos eventos de lazer.


Constantemente conversava com alguns, em grupo, ou separadamente. Todo início e fim de semana havia uma reunião com todo o efetivo em sala e, diariamente, nas formaturas de início e de fim de expedientes. Nessas ocasiões reunia os soldados após o “fora de forma” e perguntava: “O que que está pegando?” No início havia um rosário de reclamações, mas com o passar do tempo elas foram diminuindo. Consegui recursos para melhorar o “barzinho dos soldados” e entreguei a eles os materiais para as reformas para fazerem como queriam. Seria uma melhoria do local onde poderiam relaxar, tomar um cafezinho ou comprar um lanche na cantina.


Por outro lado, também consegui recursos para pagar diárias e incluir soldados nos deslocamentos operacionais fora de sede. Esse tipo de experiência era o que eles mais gostavam pois tinham muitas novidades e experiências para contar aos familiares e amigos. Ademais, os demais esquadrões não incluíam soldados em suas operações fora de sede o que tornava o Esquadrão Poti diferenciado dos demais. As outras unidades comumente aproveitavam soldados das organizações militares que sediavam suas atividades fora da Base original onde estavam lotados.


Quando por ocasião das “operações fora de sede” fazia questão de, após as operações diurnas, me reunir com eles, jogar dominó, damas, ouvir “papo furado” ou falar de coisas que eles gostavam de conversar. Passei, também, a incluir pequenos grupos para acompanharem os planejamentos operacionais de emprego e os fazia ficarem presentes nos brifings de preparação antes do início da atividade aérea. Ao fim desses brifings eu perguntava se alguém tinha alguma dúvida e perguntava nominalmente a cada soldado se eles haviam entendido o que havia sido trabalhado e apresentado.


Aos poucos eles passavam a se sentir incluídos, sentiam-se verdadeiramente como integrantes de uma unidade operacional aérea e sabiam que, eventualmente, suas opiniões e informações eram consideradas pelos militares de maior graduação ou patente.


Também lhes estimulava a independência e a proatividade em suas decisões. Claro que essa “independência” era subordinada às suas responsabilidades diretas. Sempre os estimulava a explicar o que tinham feito, os caminhos que lhes levavam a tomar as decisões que tomavam e se estavam cientes dos eventuais problemas que adviessem a partir das decisões que tomavam. Era um risco, claro, mas era importante pois afinal eu também era responsável pela formação profissional de cada um. Tinha convicção de que para se amadurecer um profissional é essencial lhe dar um certo grau de liberdade e de responsabilidade e deixá-lo ciente de que seria cobrado pelos resultados e por erros cometidos.


Como o passar dos dias percebi que a expressão de “peso” por iniciar um expediente de trabalho em um quartel, nossa unidade aérea, estava diminuindo. Em alguns, até, percebia a ansiedade em começar suas atividades e descobrir qual seria a “pemba” que deveriam resolver sozinhos. Parecia que uma saudável disputa estava surgindo entre os soldados. Ouvi de um oficial de uma organização de fora que estava “sentindo” que os soldados do “oitavo” estavam diferentes. Em um outro dia um dos oficiais que trabalhava com recrutamento havia me dito que as expectativas para serem classificados no “oitavo” estavam aumentando mesmo entre os soldados que já demonstravam encerrar os cursos com notas maiores. Alguma coisa de diferente estava acontecendo...finalmente.


Uma “verdade” que sempre trouxe comigo era a de que deveríamos fazer de tudo para que as oito horas que ficávamos longe de nossas famílias deveriam ser as melhores do dia, na medida do possível. Afinal, no ambiente de trabalho convivemos com nossa segunda “família”. Ao longo das reuniões, das atividades físicas e militares eu me dirigia a todos com o “Nação POTI”. Isso, de alguma forma, lhes construía e sedimentava uma sensação de “pertencimento”.


Próximo aos dias de passar o comando para meu substituto acabei recebendo um prêmio. Ele não veio na forma de medalha, diploma ou pecuniária. Havia algumas atividades intempestivas que misturavam manutenção de helicópteros com algumas adaptações na infraestrutura, o que requeria muitas pessoas envolvidas fora da equipe de manutenção. Normalmente cabia aos soldados essas tarefas. Elas não eram confortáveis e tomavam todo a dia, geralmente sob o sol a pino.


Ao fim do dia, na formatura de encerramento de expediente, eu costumava “compensar” aqueles que ficavam muito além da hora de término de expediente dando-lhes uma folga no dia seguinte ou permitindo-lhes que se apresentassem para o serviço após o almoço. Isso, de alguma forma, fazia com que todos quisessem aderir às atividades extras.


Havia alguns problemas que estavam se avolumando e precisávamos encerrar algumas inspeções de helicópteros e entregar serviços de alvenaria ou de reformas de estrutura antes do fim do exercício fiscal (último dia útil do ano). Já estávamos no mês de dezembro e os poucos recursos orçamentários que nos restava para completar o ano impunha uma redução de atividades administrativas para se economizar comida no rancho, consumo de água, uso de energia elétrica etc. Isso para quem era da área administrativa. Contudo tal redução afetava muito nossas atividades na área operacional de atividades aéreas.


Alguns soldados com familiares em cidades do interior do estado de Pernambuco aproveitavam as dispensas que lhes permitia para poder viajar e rever familiares e namoradas. Cinco deles, em particular, essa distância ultrapassava 500 km o que lhes tomava mais de seis horas de viagem.


Como os serviços de fim de ano se avolumavam, precisávamos de toda força de trabalho que tínhamos disponível. Entretanto, negociava com os sargentos líderes dos grupos de manutenção para não sobrecarregar os soldados que precisavam viajar para o interior. Três deles já não viam seus familiares há mais de dois meses.


Quando estava saindo de minha sala, mais de uma hora além do fim do expediente, me deparei com alguns soldados saindo, à paisana, de seus alojamentos. Dentre eles identifiquei os cinco que eu havia dispensado no dia seguinte para viajarem e se reencontrarem com seus familiares.


Ali ganhei meu “prêmio” de forma inusitada. Um dos melhores fins de “missão” que tive em toda minha carreira. Foi quando constatei que os soldados do Esquadrão Poti -aquele mesmo que só recebia quem não tinha mais para onde ir- agora tinha um maravilhoso elenco de jovens profissionais comprometidos, que nutriam e amalgamavam, dia após dia, uma sensação de pertencimento pois sentiam-se absolutamente incluídos na Nação Poti e, também, responsáveis por seus difíceis objetivos concluídos a com dificuldades e desafios variados.


O fato em si foi quando um dos sargentos, novo na função, mas já chefe de equipe de manutenção, já estressado com a pressão do cumprimento dos prazos perguntou a alguns dos que seriam dispensados no dia seguinte:


“Já vão embora? E o fim do serviço? Como é que fica?” ao que responderam:


“Amanhã a gente “valta”!


Poxy Poyi!! Guerreiro Poti!!

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