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Foto do escritorJefferson W. Santos | Ad Astra

Sobre causos e cuias.




Você já considerou dar atenção ou se preocupou com a cultura da sociedade no local ou região onde você trabalha? Se você é natural da mesma região, ótimo; contudo, se você não é, se for um "outsider" , convém ler o que segue.


Uma experiência como esta foi-me fundamental para toda a vida. Tive sorte por me acontecer logo no início da carreira gerencial, quando era um intrépido tenente tentando deslocar uma aeronave Sêneca que, apesar de bimotor, era a pistão... e à gasolina. Contudo, no caso da que eu pilotava, uma muito eficiente máquina de transformar gasolina em barulho e eventualmente, quando estava a fim de, claro,... voando.


Foi nesta ocasião que tive uma verdadeira lição de vida.


Tentava eu trasladar um "potente" Sêneca do Recife para Manaus. Bimotor: ótimo, tudo bem; a questão seriam quatro horas sobre a Amazônia. Autonomia? Mais ou menos suficiente, pois se eu chegasse ao entardecer e a chuva, comum na região, fechasse o aeródromo, voltaria para Santarém com as “calças curtas”... ou melhor, macacão de voo curto, se até lá não estivesse borrado (nada mais angustiante do que sentir os ponteiros do indicador de combustível com a luz amarela fixa e, abaixo de si, selva, selva, selva intransponível sem qualquer réstia de chão livre de árvores para pousar.


Bem, detalhes fitobiológicos intestinais à parte, pousei na bela Belém, bem antes daquela inexorável chuva. Essa antecipação trazia um vento baixo forte, que literalmente varria toda a sujeira da pista e do estacionamento para a área de parada e abastecimento das aeronaves. No meu caso, por ser quase insignificante em tamanho comparado às aeronaves comerciais de carreira, e pior, por ser à gasolina, éramos degredados ao "spot remoto". (Espero que o aspas já me poupe adjetivos não apropriados ao local).


Achei o pátio muito sujo, fora do comum e habitual, posto que, apesar de ser uma localidade de poucos recursos de apoio, na época, havia um cuidado muito grande na limpeza de FOD (Foreign Object Damage), aquelas coisinhas soltas no chão prontas para voar para dentro de uma turbina.

O abastecedor era um militar (soldado) novo. O funcionário civil não estava trabalhando em pleno dia normal de um meio de semana, sem nenhuma menção de feriado com o dia seguinte pronto para ser enforcado.


Um motivo para se redobrar os cuidados, pois tampas de tanques de combustível abastecidos por gravidade são ótimos para serem mal atarraxados e prontos para abrir em voo e, no meu caso, SOBRE a Amazônia.


Desci para acompanhar o trabalho do abastecedor e aproveitei para lhe perguntar o motivo da sujeira no pátio e a falta do abastecedor regular.


Ante a resposta do soldado, tive que me escorar na asa para não cair, dado meu espanto: o abastecedor e TODOS os funcionários civis da Base Aérea estavam em “greve branca”, de braços cruzados. Motivados pela espera da reunião de uma "comissão" por eles criada às pressas para resolver um "gravíssimo" problema.


O ano era 1985 e jamais tinha ouvido falar de greve de funcionários civis após 1964, daí meu espanto.


Bem, vamos avançar no relato para voltar aos motivos.


O novo comandante da base era um gauchão que, apesar de sua avantajada compleição física, não era uma pessoa rude. Pelo contrário, conversava e muito, com todos, sobretudo com os militares mais modernos e funcionários civis. Com esse perfil, fora ele indicado para comandar uma base que, para os entes no Planalto Central, parecia ter contumácia com alguns problemas.


Ele foi nomeado por um histórico de colocar "ordem na casa". Para nós de caserna, "dar um cobre e alinha". Ele era muito bom nisto. Apenas um detalhe: os quartéis onde ele havia logrado êxito em suas incursões localizavam-se nas regiões sul e sudeste do país. Ali era região norte... outra história.


Como ele tinha o hábito de circular a pé, todos os recantos da Base Aérea, notou que nos alojamentos destinados aos civis e também próximo ao dos cabos e soldados, havia armários velhos repletos de cuias. Sim, a metade de casca dura de coco. Algumas bem polidas, brilhando até, e outras pintadas ou envernizadas. Ele achou feio, comprometendo a beleza da paisagem e mandou dar um fim àqueles pitorescos apetrechos. Detalhe: isto foi num sábado, quando os funcionários civis não trabalhavam, ficando no quartel apenas a equipe de serviço composta somente por militares.


Primeiro round concluído, partiu para o segundo já na segunda-feira: a planilha de custos.


Detalhista, ele notou na tabela datilografada (computador, na época, só nos filmes de ficção científica) uma grande quantidade de farinha em sacas de cinquenta quilos. Para qualquer cidadão não oriundo da região, notadamente um gaúcho, aquilo era um desperdício, quase um descalabro. Sem qualquer dúvida ou vacilo, passou a caneta "carmim" e detonou aquela estapafúrdia despesa.


Sua falta de sorte deveu-se mais ao momento oportuno da correção não adotada, pois seu assessor, com poucos pendores de encarar a "fera", ficara calado, vislumbrando uma ótima oportunidade de "dar uma lição no comandante" como, de fato, ocorreu.


Cuias e farinhas inexoravelmente varridas da história da Base de Belém. O “desastre aéreo” se configurando.


Um parêntesis: tanto nas atividades aéreas como administrativas, aprendi, principalmente após este "affair", a considerar a matriz PEST. São os fatores políticos, econômicos, socioculturais e tecnológicos que uma decisão pode afetar.


No caso da decisão do comandante, o fator POLÍTICO teve um desdobramento muito ruim, pois não obstante a sua fama e boas intenções, o fato foi publicado em jornal de uma capital e lido em Brasília. Dá para se imaginar a confusão que deu.


O fator SÓCIO-CULTURAL foi afetado pelo fato de ele não ter tido o cuidado de se acercar de mais informações sobre suas decisões e ter cortado as ferramentas de uma característica histórica na região: os nativos usavam a cuia para pegar farinha no saco antes das bandejas e panelas com comida e sentavam-se alguns empapando toda comida com farinha ou apenas o feijão e caldo. A farinha, grossa e com caroços, detalhe fundamental, era simplesmente essencial ao bem estar e, sobretudo, à produtividade dos funcionários civis, cabos e soldados.


Já o fator ECONÔMICO adveio do prejuízo que ele teve que arcar com limpeza e descontaminação de tanques de solo (encravados abaixo dos spots, cuja poeira e sujeira entraram por galpões "esquecidos" abertos. Bem, esses foram os resultados que soube semanas após o ocorrido.


Para sorte e fim de seu périplo de infortúnios, ele não teve problemas com o campo tecnológico.


Bem, este lamentável caso não lhe custou o comando, mas tirou-lhe, logo no início de sua missão de comando, o muito da credibilidade como gestor eficiente que ele portava como seu portfólio e que lhe permitiu ser indicado para tão relevante função na Aeronáutica.


Ficam duas sugestões que usei no resto de minha carreira na caserna. A primeira: nunca tome uma decisão sem antes consultar TODOS os setores que serão envolvidos e sofrerão o impacto de suas decisões. A segunda: jamais confie em apenas um assessor; TODOS seus colaboradores são seus assessores e todos estarão, se assim considerados, coesos com você na consecução de seus objetivos.


Observação: Este artigo é parte integrande do livro: "Fora do solo" - Gestão Estratégica na Atividade Aérea, de minha autoria.

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